Se eu fosse eu

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. 

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo

Um Chamado à Iniciação Interior

Por Hiran de Melo

Há textos que não se leem — se escutam. E há escutas que não se fazem com os ouvidos, mas com o coração em estado de vigília. “Se eu fosse eu”, diz Clarice, e a frase reverbera como um sussurro antigo que atravessa o templo da alma. Não é apenas uma inquietação filosófica, mas um verdadeiro rito de passagem. Um chamado ao desvelamento, à retirada das máscaras que o mundo nos ensina a vestir, à revelação da centelha que esquecemos de cultivar.

Como ensinou Louis Antoine Travenol, o caminho do iniciado não é feito de respostas prontas, mas de perguntas que nos desinstalam. A pergunta “se eu fosse eu” é uma dessas chaves ocultas que abrem portas entreabertas no templo do espírito. Ela não busca o papel perdido, mas o ser extraviado. O papel é símbolo; o verdadeiro extravio é o da essência que se esconde sob o véu do cotidiano.

O texto de Clarice caminha com reverência sobre o pavimento mosaico da identidade. Ora hesita, ora avança, como o aprendiz diante do véu do templo. Há uma dança entre o sentir e o pensar, entre o medo da luz e o desejo de nela habitar. E é nesse limiar — entre o profano e o sagrado — que o texto resplandece. Ele não se impõe, mas se insinua. Não grita, mas murmura. Como quem sabe que o mistério não se revela à força, mas à escuta paciente e amorosa.

A linguagem, sempre tão viva em Clarice, aqui se aproxima do silêncio ritual. Há frases que parecem querer recolher-se, como se o verbo fosse já um risco de profanar o sagrado do sentir. E isso é belo. Mas talvez o texto pudesse permanecer mais tempo na penumbra, onde o mistério se revela aos que sabem esperar. Pois o Ser não se entrega à pressa, mas à demora da alma que busca com humildade.

A crítica, então, não se dirige ao gesto — que é nobre e valente — mas à fuga que o acompanha. O “se eu fosse eu” é uma porta entreaberta. O texto a contempla, mas não a atravessa. E talvez esse seja o convite que nos é feito: não apenas refletir sobre o Ser, mas habitá-lo com coragem. Não apenas sentir o desconforto da verdade, mas fazer dela nossa pedra angular.

Pois há uma alegria que só se alcança quando se aceita a dor de ser inteiro. E o texto, com sua beleza inquieta, nos conduz até a soleira dessa morada interior. Falta apenas o passo — aquele que cada Irmão, em seu tempo, saberá dar. E quando esse passo for dado, não haverá mais papel perdido, nem identidade extraviada. Haverá apenas o Ser, enfim revelado, como luz que não se apaga.

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